sábado, 15 de janeiro de 2011

Pêlos no nariz

Quis muito chorar, mas as lágrimas não saiam. Um buraco que começou pequeninho, foi crescendo ao som das palavras. Uma mistura de vazio e preenchimento completo. Uma explosão de sentimentos puros, verdadeiros, aflorando. Simples. Sem medo, sem segredo, um sopro vindo de dentro, com toda a leveza e dureza de ser o que é. Eu quis muito chorar, lágrimas contidas, mas elas insistiam em não cair. O baú se abrindo rangendo as dobradiças. Ele tanto nada fez que caíram, suaves, tranquilas, uma a uma. Sem pressa. Ele me libertou, e nem sabe disso, me encheu de coragem, era o que tava faltando. Recortes, imagens, títulos, cenas, segredos. Passado. Guardado. Escondido. Na hora de ir. Sair do aprisionamento do medo, medo de uma talvez-futura-perda. Que com o tempo perdeu o talvez, depois a futura.

Depois do encontro inspirador com Anderson, no Muda, segui em clima lisérgico aos fundos do Náutico – com o perdão do trocadilho. No caminho, refletindo sobre minha euforia, alimentava de coragem e boas esperanças meu buraquinho infeliz. Seguia com o livrinho azul nas mãos, lendo e relendo, decorando, sentado na escada do ônibus. Me encantei pela Máquina, uma máquina de não sentir dor. Ia decorando e repetindo em voz alta pelo caminho, normalmente canto ou assobio, mas hoje, recitava. Jogava as palavras ao mundo.

-Tens a vista boa, heim?!
Olhei para o lado e tinha um senhor de aproximadamente 65 anos, vestido de branco, chapéu na cabeça, sentado em uma cadeira plástica branca na calçada, sozinho, sorrindo.
-Oi?
Rebati, não tinha certeza de que era comigo
-Tens a vista boa.
-Por que?
-Tu tais andando e lendo, no escuro!
Nem tinha percebido que estava escuro, só queria aprender a história depressa. Minha vontade era sair por aí dizendo para todos da invenção desse mineiro.
-Graças a Deus, neh?! Que eu tenho a vista boa.
-É... Tu ta estudando?
-Não. Quer dizer, sim. Também (fiquei confuso). É que são contos, histórias, poesias.
-Aann...
Tive a impressão de que ele não havia entendido, também não sei se fui convincente.
-O senhor quer que eu leia?
-Quero!

Eu li:

“Alguém um dia inventou uma máquina de não sentir
dor. A invenção era simples, como devem ser as
invenções. Uma folha de papel de seda era jogada no
ar, dentro de uma sala pintada de branco e
hermeticamente fechada. Num dos cantos da sala, um
ventilador. E pronto.
Enquanto o papel estivesse no ar, a pessoa estaria
torcendo por ele. E a dor que sentia ficava
momentaneamente esquecida.

Às vezes saia um suspiro. À vezes uma lágrima surgia.”

Ele me pediu que escrevesse em um papel, queria dar para a filha ler. Prometi que levaria em algum momento, não tínhamos caneta e nem uma outra alma viva estava presente.
-Você traz depois.

Há pessoas na vida que surgem assim. Tenho a impressão de que são como estrelas que vemos sumir depois de terem deixado de existir há milênios. Com essas pessoas compartilhamos momentos únicos, íntimos como nenhum outro. O desconhecido me traz conforto, segurança. Ele confiou tanto em mim, sem sequer saber meu nome. E esta confiança gratuita me fará voltar, com o papelzinho na mão.

Tenho me negado às lágrimas, cheguei a pensar que meu poço havia secado. Sempre fui muito chorão, adoro chorar de alegria, vendo filme, bêbado. Mas não admito chorar de dor ou de tristeza. Não admito me render. Confessar fraqueza, fragilidade. Isso me deixou duro. Minha relação com esses sentimentos é de desprezo, e quando os sinto choro de raiva, nunca de dor. “Tais dizendo, neh?!”

Sinto muita falta do passado. Tenho tido uns sonhos absurdos que continuam na noite seguinte. Isso já têm alguns dias e quero sinceramente ver no que isso vai dar. Mas tenho medo de encarar a realidade que irei me revelar. Algumas pessoas são presença certa. Guias da minha inconsciência, guardiãs da minha inocência. O passado como registro do que aconteceu, como memória que não se abandona. Como pêlo no nariz, não sei se cai um dia, mas arrancar dói muito. Aí deixamos lá. Ali dentro é quase imperceptível, no máximo apara-se as pontas que aparecem de manhã quando olhamos no espelho. Já viu nariz de velho como é cabeludo?

Faltava coragem para abandonar isso tudo. O desapego é um exercício de paciência e persistência. Mas “o coração é um órgão independente do corpo humano, ele só faz o que quer”. Por isso andei meio afastado dele, com medo de que me causasse mais problemas. E ele se sentiu sozinho, trancado no baú.

Ver que meu coração estava ali há tanto tempo me fez perceber o vazio que isso me causava. Não o ouvia mais gritar lá dentro. Não havia mais ar. Trouxe-o de volta. E arranquei alguns pêlos do nariz.